Dança, circo, teatro, folguedos populares e música estão no longa de Walter Carvalho com Antonio Nóbrega
Helena Katz, especial para o Estado de S.Paulo
Respeitável público: este espetáculo tem a forma de um longa-metragem, ou melhor, este circo é mostrado como teatro, ou melhor, esse documentário acontece como um concerto musical, ou melhor, aqui temos uma sonata, na qual o tema sempre reaparece. Brincante, o filme de Walter Carvalho com Antonio Nóbrega, que estreia nesta quinta-feira, 4, em São Paulo, é filho de uma identificação mútua entre os dois artistas, que começa pelo Nordeste, que gestou ambos (Walter é de João Pessoa, e Nóbrega, do Recife).
Nesta quarta colaboração, antecedida por Lunário Perpétuo (2003), Nove de Fevereiro (2008) e Naturalmente(2011), eles fazem da característica que os aproxima, e com a maestria que lhes distingue, uma protagonista. Senhoras e senhores, com vocês, a estrela desse Brincante: uma mistura saborosa e atraente entre dança, circo, teatro, música, folguedos populares, mímica, clown, ventriloquismo, literatura e poesia, temperada pelas histórias de Tonheta, de Mateus, de João Sidurino e sua Rosalina de Jesus (Rosane Almeida).
Sintonia. Antonio Nóbrega mostra seu trabalho poético e sensorial em documentário
“Somos um povo muito sincopado, não é a nossa música ou a nossa dança, mas a nossa própria maneira de agir que é sincopada e ambivalente. O filme precisava ter sintonia com isso, que está em meu trabalho, e, por isso, ele é poético e sensorial”, diz Nóbrega.
O projeto de fazer um filme nasceu bem antes. “Em 1992, o espetáculo Brincante entusiasmou cineastas como Luiz Carlos Barreto e Cacá Diegues e, por desencontros de agendas, não se concretizou.” Walter Carvalho apareceria quase 15 anos depois, em Auto de Luz, um especial de Natal da TV Globo dirigido por Luis Fernando Carvalho.
“Começamos a trabalhar nele logo depois do Nove de Fevereiro, em 2008, com o propósito de produzir uma radiografia do universo cultural e artístico da minha carreira, daí ser discreto e sutil com relação à minha vida pessoal, que só aparece através da minha família atuando nesse universo.”
As imagens são os textos do filme e elas nos falam de um mundo que sempre recomeça, fincando as estacas para delimitar o espaço no qual o espetáculo pode acontecer. Talvez essa seja a metáfora mais forte para o que Antonio Nóbrega e Rosane Almeida têm feito pela cultura popular brasileira.
“Cada trabalho que faço, parece que estou começando do começo, porque ainda sou um nome volátil para a maior parte da sociedade brasileira. Depois de mais de 40 anos de carreira, ainda me surpreendo com a desproporção entre o reconhecimento e a extensão do desconhecimento que me cerca. Nunca tive uma grande gravadora, o novo trabalho de dança, que vou estrear no ano que vem, teve seu orçamento reduzido a 1/5 do necessário. Mas já aprendi a trabalhar não como gostaria, mas como é possível, e não sou o único, infelizmente.”
Nóbrega se prepara para “tornar o seu baú ainda mais heterogêneo”. Começa a escrever um ensaio reunindo os três eixos do seu percurso. Parte da sua experiência com os mestres populares, depois vai contar as histórias de como se formaram manifestações como a capoeira, o galope à beira-mar e muitas outras, para finalizar propondo como esses conteúdos e valores podem ser ressignificados hoje.
“Tenho também um outro projeto, e ainda não sei como os dois se ligarão, pois desejo codificar uma dança brasileira com base em matrizes folclóricas.” Ou seja, o caminhão mambembe que abre o filme continua a rodar pelas esperanças e sonhos que nunca param de anunciar um Brasil que vai começar.
Com ‘Brincante’, Walter Carvalho se inspira nas artes plásticas para reconstruir o universo onírico em um longa feito para o olhar
Luiz Carlos Merten – O Estado de S.Paulo
Walter Carvalho começou no cinema, influenciado pelo irmão, Vladimir Carvalho, pela via do documentário. Por isso mesmo, ele diz que suas ficções são impregnadas pelo documentário, mas, inversamente, todos os seus documentários têm um pouco de ficção. O caso de Brincante é exemplar. Para ele, o filme não deixa de ser um documentário sobre Antônio Nóbrega, sobre a tensão de sua musculatura que deixava o diretor louco. “Preciso captar isso”, ele dizia para si mesmo. Mas é uma ficção porque Carvalho está contando uma história – a de um artista que quer fazer a travessia das classes sociais e das gerações para abraçar seu povo.
Por isso mesmo, Walter Carvalho fica triste com algumas observações que lhe faz o repórter. O filme é muito bonito, muito bem produzido e realizado, mas as coreografias das cenas de dança – Nóbrega e sua trupe na cidade – parecem uma versão um tanto requentada de West Side Story/Amor Sublime Amor, de Robert Wise e Jerome Robbins, mais de 50 anos depois. “Todo filme assimila influências. Certamente não quisemos recriar aquele filme, mas ele está no seu imaginário e, por isso, você vê o nosso desse jeito”, reflete o diretor.
A outra observação lhe parece mais penosa ainda. Nóbrega, quando dança, muitas vezes, coloca-se num plano de superioridade, acima das pessoas ao seu redor. Por exemplo, ele dança sobre paradas de ônibus, acima de tudo e todos. Não será isso uma idealização e até elitização do artista? Iria contra o trabalho do Nóbrega, que é todo ele uma pesquisa de raiz e um desejo de abraçar o ser humano. Num desses delírios megalômanos de diretor, queria filmá-lo no domo do Ibirapuera, mas não para elitizar. “Nóbrega é do povo, ele é povo. A ciranda que ele arma na Paulista, na parte aberta do Masp, é a prova”, diz o diretor.
Na sua carreira de cineasta, diretor de fotografia e fotógrafo – está lançando um livro que ilumina essa faceta do seu talento –, Walter Carvalho tem feito ficções como Cazuza e Budapeste, documentários como Moacir Arte Bruta e agora Brincante, que ele enquadra, um pouco a contragosto, nessa categoria. “É que tem muito de ficção”, esclarece. Todo o circo tem um componente artificial que Carvalho assume. “Meu cinema conecta-se com as artes plásticas, para mim, é um trem cinema, viajando entre formas de expressão.” E ele conta uma história. “Uma vez, estava filmando numa praça com outro diretor. A cena armada, um ciclista furou o bloqueio e avançou. O diretor ficou p… Para mim, foi a revelação de algo que já intuía. Aquele ciclista era a única coisa real na cena.”
Antes que Carvalho fizesse seu filme, outros diretores (Walter Salles, Cacá Diegues, Luiz Fernando Carvalho) já haviam conversado com Nóbrega. Walter Carvalho quer ir além dos olhos com seu Brincante. A noite é artificialmente estrelada, o carro do artista parece de brinquedo em muitas tomadas. Só que, mais do que música e dança para os olhos, Carvalho quis fazer um filme para o olhar. Toda a relação do artista com a velha, toda a vontade de Nóbrega, que ele assume, de contar uma história que mistura personagens de seus espetáculos.