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O palhaço e agitador cultural
A trajetória de Hugo Possolo, dos Parlapatões, é contemplada com o Prêmio Fundação Bunge
Por Valmir Santos | Para o Valor, de São Paulo
“Uma obra de arte pode inclusive incomodar as pessoas, coisa que uma mercadoria jamais poderia fazer”, diz Possolo
O espectador brasileiro conhece os talentos cômicos de Hugo Possolo para as artes do circo e do teatro. Há cerca de 30 anos ele aprendeu as técnicas de palhaço no Picadeiro Circo Escola, em São Paulo. E há 23 anos estava entre os fundadores do Grupo Parlapatões, dos mais profícuos da produção teatral da cidade. Mas a face de agitador cultural ganhou outras definições nos bastidores do trabalho de encantar ou provocar as pessoas pelo riso. Possolo mostrou tino para administrar o Espaço Parlapatões, a um só tempo teatro, bar, café e sede prestes a completar oito anos de atividade na praça Franklin Roosevelt, no centro paulistano. Também abraçou a militância por políticas públicas para os artistas circenses, muitas vezes menosprezados pelas autoridades culturais.
A fachada do número 158 não dá ideia do que existe por detrás das portas de aço baixadas. Lembra um estabelecimento comercial qualquer. Quando o local está aberto, de terça a domingo, das 16h à 1h, por 52 semanas no ano, o público adentra um cenário onírico ao avistar guarda-chuvas coloridos pendurados no teto. O pé-direito generoso e as duas colunas aparentes e robustas postadas num canto contribuem para a atmosfera. Nas horas precedentes ou posteriores às sessões dos espetáculos, as mesas costumam lotar – comportam até 300 pessoas. Parte dos assentos permanece ocupada mesmo após o terceiro sinal na sala ao fundo, com 96 lugares. A área global possui cerca de 400 m2.
“A gente percebia o espaço como ponto de encontro. Nem pensávamos que o bar ia dar certo. Acabou ganhando movimento. Não é a única fonte, mas ajuda a sustentar nosso projeto artístico”, diz Possolo. Sua mulher, Marcia Chiochetti, assumiu a gerência – eles são pais de Camila, que estuda cinema em Londres e já contracenou muitas vezes com o pai-palhaço. Marcia trabalhara em instituições financeiras e imaginava que o bar atrairia público somente em virtude das peças em cartaz. Chegou a levar filmes em DVD para passar durante as sessões e ir embora para a casa após o final. Todas as expectativas foram superadas.
Casada com Possolo há 22 anos, 1 a menos do que a idade do coletivo Parlapatões, Marcia comanda uma operação diuturna para servir porções e pratos rápidos como sopa, escondidinho, tapioca e as minipizzas da 1900 Pizzeria, que apoia a trupe há duas décadas e bolou receitas com nomes de peças do repertório. A folha de pagamento do espaço compreende 12 funcionários incluindo escritório, bar, programação, segurança e serviço de limpeza.
Em meados dos anos 2000 a praça Roosevelt, hoje com arquitetura repaginada, registrava movimentação cultural expressiva. Havia três salas de teatro – Os Satyros, Studio 184 e Teatro X – e uma livraria – Sebo do Bac -, por exemplo. “Inauguramos em 11 de setembro de 2006 para fazer piada com a data e criticar toda forma de preconceito. Quando decidimos abrir parecia que, por fazer comédia, não podíamos vir para cá. Sentíamos isso inclusive no meio teatral. Então pensamos: vamos jogar um avião na torre dos preconceitos”, diz o palhaço que gosta de encabeçar o ofício na lista das funções artísticas relacionadas a seu nome: ator, dramaturgo, diretor, cenógrafo, figurinista e aderecista.
Adquirir o imóvel e reformá-lo significou investimento da ordem de R$ 1 milhão ao longo de dois anos, estima Possolo, compreendendo custos dos primeiros meses após inauguração. Ele e seu sócio no grupo e na empresa Agentemesmo Produções Artísticas, o ator Raul Barretto, dispunham de cerca de R$ 170 mil em caixa e patrocínio de R$ 200 mil da Petrobras, que incluía verba para apresentação de repertório.
“[Tiririca]… não falta às sessões e conseguiu aprovar emendas parlamentares importantes para o circo no país”
A intenção era alugar, mas o jornalista e empresário Moacir Palmeira, admirador longevo dos Parlapatões, os convenceram a ousar e negociar um bom contrato com o proprietário da edificação onde uma padaria fora desativada há anos. “Era mais ou menos c omo um leasing. Três anos de aluguel e, se desistíssemos no período, o dinheiro ia embora e devolveríamos o imóvel. Se desse certo, o valor pago até então já faria parte da compra. Foi assim que adquirimos a sede. Graças à estratégia de um cara que entende de mercado”, diz Possolo. Foram retiradas toneladas de entulho em função da reforma. Já a sede anterior foi deixada para trás, funcionava num galpão multiuso em Pinheiros, na zona oeste.
Apesar da plena inserção do Espaço Parlapatões, o palhaço pontua o momento delicado de outras salas da cidade que estão fechando (ou sob a ameaça de) em virtude do aquecimento do mercado imobiliário. Cita o caso do Núcleo Bartolomeu de Depoimentos, na Pompeia; do Centro Internacional de Teatro, o CIT-Ecum, na Consolação; e do grupo Os Fofos Encenam, no Bixiga.
Além das criações próprias dos Parlapatões, a programação recebe produções de outros núcleos que locam o palco de plateia frontal. A programação das noites de terça a domingo pode somar até oito espetáculos na semana. Essa dinâmica permite ao grupo cumprir agendas em outros bairros ou mesmo fora da cidade e do Estado. “Isso gerou convívio com outros artistas. Boa parte dos grupos que não tem sede aberta ao público ou que não recebe outras companhias tende a se isolar.”
A seu modo, o bar e o teatro do Espaço Parlapatões refletem a vocação gregária dos artistas para interagir com a cidade. Entre 1949 e 1946, o Teatro Brasileiro de Comédia, o TBC, à rua Major Diogo, no Bixiga, contava com um anexo, o Nick Bar, frequentado por criadores e espectadores. Apesar dos notívagos, tinha perfil de restaurante também. Era ali que os elencos faziam refeições leves antes ou depois das sessões, lembrava a atriz Cleyde Yáconis (1923-2013), acostumada a cumprir até dez apresentações semanais.
Outra bem-sucedida experiência de empreendedorismo cultural de Possolo foi a parceria entre Parlapatões e grupo Pia Fraus no projeto Circo Roda Brasil (2006-12), em paralelo aos primeiros anos de consolidação do espaço. Sob patrocínio do Grupo CCR, foi concebida e montada uma estrutura de lona apoiada em mastros externos, ou seja, fora do raio de visão dos cerca de 700 lugares em volta picadeiro. Em algumas circulações dos quatro espetáculos montados no período, eram necessárias até 19 carretas para efetuar o transporte.
Capixaba, Possolo, de 50 anos, já interpretou Piolim no espetáculo homônimo de 1997, dirigido por Neyde Veneziano a convite dos Parlapatões. Como o palhaço imortalizado por Abelardo Pinto (1897-1973), que cativava o público e angariava admiração dos modernistas da Semana de Arte de 1922 pela capacidade de comunicação direta que o circo estabelece, Possolo não tem dificuldade ao se relacionar com os mais diferentes setores da sociedade.
Seu palhaço de batismo é o Tililingo, dos tempos de formação na Picadeiro Circo Escola, em meados dos anos 1980. Costuma revisitá-lo em espetáculos ancorados em números circenses, como “Clássicos do Circo”, apresentado com frequência, mas dispensado de usar o nariz vermelho ou maquiagem. O rosto limpo não ofusca o poder de desestabilizar a audiência, seja ela infantil ou adulta.
“O palhaço tira a maquiagem e o nariz e vive como qualquer outro cidadão. Faz compra, paga aluguel, toma ônibus, anda de carro e paga gasolina. O meu papel de cidadão é tão relevante quanto o de artista.” O palhaço convicto, portanto, também tem dado a cara a tapa, ao manifestar seu ponto de vista sobre temas sociais e políticos. Como nos artigos publicados no jornal “Folha de S.Paulo” em que defende o voto nulo ou critica a eleição do colega Tiririca, ou Francisco Everardo Oliveira Silva, ao cargo de deputado federal pelo Partido da República (PR-SP), ora candidato à reeleição.
“Dentro desse jogo político, o Tiririca podia ter uma simbologia mais forte se não fosse candidato oficial. Seria uma boa forma de fazer palhaçada. Ou seja, se lançar candidato para discutir a seriedade da política. Mesmo assim, não sei dizer se é oportunismo. Ele parece uma figura humana incrível, não falta às sessões e conseguiu aprovar emendas parlamentares importantes para o circo no país.”
Ao assumir a coordenação nacional do circo na Funarte, o órgão das artes cênicas do Ministério da Cultura, entre 2004 e 2005, Possolo demarcou fase militante da carreira quanto à luta por políticas públicas nessa área. Tornou-se interlocutor referencial. “Busco o entendimento do significado e da função da arte para o público, seja o circo ou o teatro. Para que o meu teatro não seja tratado como mero serviço ou produto, porque não é uma coisa de mercado, ele é uma interferência na vida das pessoas. Aliás, uma obra de arte pode inclusive incomodar as pessoas, coisa que uma mercadoria jamais poderia fazer.”
Ainda no horizonte das artes circenses e sua ressignificação para além do entretenimento, Possolo atua como curador, como ocorre na próxima edição do Festival Paulista de Circo, que acontece em Piracicaba entre quinta-feira e domingo. Sua trajetória acaba de ser contemplada pelo Prêmio Fundação Bunge, distinção de incentivo a personalidades de destaque por disseminar e inovar o campo do conhecimento em diversas áreas.
Postagem – Alyne Albuquerque
Tags: hugo possolo, Valor Econômico
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