Arquivo Aberto – Memórias que viram Histórias
MARIA CAROLINA DRESSLER
“Na primeira vez, assisti do lado de fora a pessoas correrem apavoradas, outras, com ataques de riso ao sair do número –porque lá dentro um terrível monstro as teria atacado. Tinha cerca de sete anos e, montada nos ombros do meu pai, imaginava o que se passava ali. Até hoje não sei se realmente cheguei a assistir à transformação da mulher em gorila nessa ocasião ou se criei imagens com o que me contavam. No meu imaginário infantil ela não era um monstro, e a transformação carregava pra mim um misto de melancolia e rebeldia.
Foi partindo desse encantamento que cultivei durante muitos anos a vontade de levar a Monga para o teatro. Em certa ocasião escrevi uma cena baseada naquele meu sentimento de criança: uma garota que se apresentava sapateando para um público sedento que, insatisfeito, jogava tomates.
Ela então se transformava num porco selvagem devorando os tomates do chão. A cena nunca foi montada, mas estimulou uma longa pesquisa. Foi então que me deparei com registros e artistas como Romeu del Duque, criador do formato mais popular do truque que, no Brasil, leva o nome de Monga.
Quando cheguei meio acanhada a seu parque, em 2012, um senhor robusto e bonachão veio abrir o portão acompanhado de um cachorro serelepe. Ele me abraçou e logo mostrou sua mão que tinha acabado de queimar na solda fazendo consertos em equipamentos. Pedi que fosse ao hospital e deixássemos o encontro para outro dia, mas ele se negou, dizendo que, de queimaduras como aquela, já tinha tido dezenas.
O primeiro encontro com Romeu me levou imediatamente para os anos 80, e me vi como a criança admirada nos ombros do pai. Comecei a falar com a voz embargada, e ele contou suas aventuras com a mulher-macaca.
Era comum pessoas desmaiarem antes mesmo de concluída a transformação. Certa vez um delegado quis interditar a atração, mas saiu correndo assustado quando o “macaco” abriu a jaula. Também já recebeu a visita de um fiscal do Ibama preocupado com o tratamento dado ao animal. E até mesmo casos de agressão física e ameaças à macaca.
Romeu é de família circense, e um tio o presenteou com uma miniatura do truque ainda criança. Anos mais tarde, foi convidado para realizar a transformação na TV Tupi e, nos anos 70, montou o número numa festa no Playcenter. A partir daí, passou a ser uma das atrações mais visitadas do parque, formando filas gigantescas.
Eu não poderia ter imaginado que os caminhos dessa aventura me levariam também à Itália. Se o riso (e até o deboche) era a primeira reação dos que me ouviam contar que faria Monga no teatro, quando falava que pesquisaria na Itália o espanto era ainda maior. Mas o fato é que o monstro símio que me encantou ainda criança é o mesmo que encontrei na obra do cineasta italiano Marco Ferreri.
Com seu cinema grotesco finalmente pude decifrar o que me causava tanto fascínio no truque: Ferreri fala do resgate da humanidade, da identidade, da origem, do renascimento e da liberdade. E o macaco é metáfora perfeita deste grito pelas origens.
Para Ferreri, reconduzir o animal na gaiola das instituições sociais é o único modo de recuperar a própria bestialidade perdida numa espécie de réplica. O King Kong morto na ilha de Manhattan em “Ciao Maschio” é uma síntese do desamparo desse homem massacrado. E, quando Ferreri diz que a sociedade é culpada de tudo, se refere à sociedade do espetáculo.
Em 2013, pude finalmente estrear a montagem de “Monga” e homenagear artistas como Ferreri com seu talento de pensador moderno e o genial Romeu del Duque, conhecido como “pai da Monga” e responsável pela atração que conheci na infância.
O urro da Monga de Del Duque é um grito pela humanidade. Assim como os filmes de Marco Ferreri, segundo ele, falam de viagens, viagens à procura de nós mesmos.”