Um talento acrobático
Eu & Final de Semana – Valor Econômico
Por Elaine Guerini
A figura do palhaço fascina Domingos Montagner desde os anos 80, quando o então professor de educação física descobriu o que realmente queria fazer da vida: “Mergulhar no arquétipo circense que vê o homem e o mundo com lente de aumento”. “Palhaço é um assunto sério. É um estado elevado do artista. Um ser com grande sensibilidade e poder de síntese e de comunicação. Um dos poucos que é capaz de fundir a tragédia e a comédia no mesmo ato”, diz o palhaço, artista de circo e ator paulistano, de 54 anos. Há um pouco do personagem de maquiagem carregada, nariz vermelho e sapatos desproporcionais em tudo o que Montagner faz. Seja na composição de Santo, o herói da novela “Velho Chico”, no ar pela Rede Globo, ou na abordagem do sedutor Corvo, que ele interpreta no longa “Um Namorado Para a Minha Mulher”, desde ontem nos cinemas do país. “O palhaço é um eterno aprendizado de desapego do ego, de generosidade com o outro e de compromisso com a cena.” Mesmo quando a sua interpretação é registrada por uma câmera, de TV ou cinema, a noção de 360 graus de quem se apresenta no picadeiro acompanha Montagner. “Uma vez que passamos pelo circo ou pelas ruas, que é uma escola de atuação ímpar, esse tipo de atenção fica impressa no artista, fazendo com que ele carregue o mesmo olhar para os outros veículos”, conta o ator, lembrando que Oscarito, Charles Chaplin e os irmãos Marx vieram do circo. “O espírito do ‘clown’ está impregnado em Domingos. Ele carrega o humor e a melancolia do palhaço”, afirma a cineasta Julia Rezende, que o dirigiu na comédia “Um Namorado Para a Minha Mulher”. Tratase da versão brasileira de uma trama homônima argentina assinada por Juan Taratuto, sobre um casal em crise. Como o marido (Caco Ciocler) não tem coragem de pedir o divórcio, ele apela a um amante profissional (Montagner), pagandoo para seduzir a sua mulher (Ingrid Guimarães) na esperança que ela tome a iniciativa da separação. O sujeito contratado cumpre o prometido, ao exibir habilidades circenses, que incluem apresentação com fogo e facas, malabarismos e acrobacias no trapézio. Montagner aprendeu esses e outros truques em sua passagem pelo Circo Escola Picadeiro, após estudar interpretação com Myriam Muniz (19312004), em São Paulo. “Domingos nos surpreendeu com os seus talentos, trazendo o brilho do circo ao filme. Em tudo o que faz, ele não tem medo de arriscar, andando na corda bamba com segurança e tranquilidade”, afirma Julia. Abandonar a arte popular, em nome dos crescentes convites para atuar em cinema e TV, não está nos planos de Montagner. Nem mesmo com a boa recepção do personagem Santo, que consolida o status do ator como protagonista de novela das 21h. Na trama de Benedito Ruy Barbosa, ele tem conseguido sustentar o personagem, que é filho de retirantes, sem perder o encanto um desafio constante para quem interpreta o herói em uma trama de longa duração, por quase sempre cair no previsível. “Nunca pensei em ser ator de novela. Sempre gostei de educação. Só entrei em curso de teatro e no circo para ampliar os recursos didáticos e pedagógicos. Foi a vida que se encarregou de todo o resto.” Desde 1997, quando fundou o LaMínima, em parceria com Fernando Sampaio, Montagner faz apresentações de rua com o seu grupo de teatro. A companhia tem um repertório de 12 espetáculos, incluindo “A Noite dos Palhaços Mudos”, de 2008, com o qual ele venceu o Prêmio Shell de melhor ator. Para celebrar os 20 anos do LaMínima, no ano que vem, Montagner já começou a desenvolver uma adaptação da ópera italiana “Pagliacci”, de Ruggero Leoncavallo (18571919), para estrear em março. “Se abrirmos mão desse espaço, onde resgatamos o que o palhaço representa na sociedade, quem o ocupará?”, pergunta o ator, atualmente o diretorartístico do Circo Zanni, fundado por ele e mais oito artistas em 2003. “É no equilíbrio entre o humor grotesco do palhaço e o sublime das acrobacias que está a força do circo.” Sua reverência pela arte circense foi aproveitada também no set do filme “O Rei das Manhãs”, em que Daniel Rezende relembra a trajetória de Arlindo Barreto, o intérprete do palhaço Bozo no Brasil na década de 80. No filme com estreia prevista para 2017, Vladimir Brichta encarna o protagonista, enquanto Montagner vive o mestre que ajuda a formá lo na profissão. “Vi Domingos no picadeiro algumas vezes, onde ele demonstrou total domínio do corpo, da técnica e da emoção. Sua sensibilidade nos emociona e nos faz rir, fazendo dele um ator visceral e delicado”, diz Daniel Rezende, que também contratou o ator para dar consultoria sobre a visão do palhaço apresentada no filme. “O último ano foi puxado, com poucas horas de sono”, diz Montagner, com mais dois longas inéditos no currículo. Foi chamado por Walter Lima Jr. para o elenco de “Através da Sombra” e por JC Feyer para atuar em “O Rastro” ambos ainda sem data de estreia definida. No primeiro, o ator interpreta um fazendeiro misterioso que contrata professora para seus sobrinhos órfãos. No segundo título, um suspense que envolve um escândalo de tráfico de órgãos, seu personagem é o governador do Estado do Rio de Janeiro. Montagner ainda ajuda a denunciar a violência doméstica, abordada com crueza pelo diretor Marcos Schechtman, em “Vidas Partidas”, atualmente em cartaz. “Foi um trabalho exaustivo, já que o meu personagem precisa resumir a complexidade da questão, que não é exclusiva de uma classe social e não segue um manual de comportamento. Daí a dificuldade em diagnosticála, fazendo com que a vítima demore muito para assumir que é vítima e para tomar uma atitude”, afirma o ator. A ambiguidade do marido de “Vidas Partidas” contrasta com a trajetória heroica de Santo, de “Velho Chico” o personagem mais popular na carreira de Montagner. Graças ao líder da família Dos Anjos, em atrito eterno com os Sá Ribeiro, o ator bateu recentemente os 32,5 mil de seguidores no Instagram. “Acompanho, mas não administro a minha conta. Como não tenho familiaridade com essa linguagem, não me arriscaria.” A empatia de Santo junto ao telespectador ele atribui ao “resgate de valores esquecidos” que o personagem nordestino propõe no folhetim. “Estávamos carentes de figuras que abraçam verdadeiramente o conceito de família e de fraternidade, como Santo faz em sua jornada épica, cheia de obstáculos.” Nem todo mocinho de novela precisa ser “chato e ultrapassado”, na visão de Montagner. “Na pele do herói ou do palhaço, o ator só cumpre a sua função quando faz o público questionar o que pensa, o que sente e o jeito como vive. Daí a beleza dos arquétipos, em refletir diversos aspectos da experiência humana.”