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“O mito chamado circo”

Erica Stoppel, em apresentação no Zanni, no Sesc Consolação/Foto Asa Campos

Erica Stoppel, para Panis & Circus

Com alegria recebi pelo correio a Segunda Carta Aberta ao Circo, da dramaturga belga Bauke Lievens. Uma nova tradução da Panis & Circus* me ofereceu a possibilidade de degustar suas reflexões e provocações.

Sem dúvida a autora quer nos provocar, nos interrogar, promover a reflexão. A primeira Carta Aberta provocou o incomodo e a primeira pergunta que surge a partir dessa reação seria: por que o circo deve ser ou se tornar arte e por que o ofício em si não seria suficiente?

Precisamente nesse lugar de conflito no qual nós artistas nos deparamos ao enfrentar os desígnios da nossa técnica e nossas reais necessidades expressivas é que se ancora uma grande linha de reticências.

Talvez, poderíamos nos perguntar porque escolhemos fazer trapézio, equilíbrio no arame, acrobacia de trupe ou malabares com caixas ou muitas outras modalidades.

Será que há uma real satisfação na realização da proeza? Será que isso nos preenche suficientemente enquanto artistas da cena?

A Bauke não oferece respostas para nossas perguntas mas se dedica no momento a nos ajudar a discernir conceitos que estão intrínsecos nas nossas vidas, afinal de contas, não somos imunes  à nossa cultura. Talvez essas cartas tenham como função desestabilizar padrões rígidos que carregamos com maior ou menor consciência e nos colocar em desequilíbrio. Afinal de contas, quem escolhe viver uma vida no circo está sujeito a se colocar em risco.

Leiam abaixo a segunda carta de Bauke.

O mito chamado Circo

Bauke Lievens

“Doce é o ensinamento que a natureza traz;

Nosso intelecto malévolo

Deforma a bela forma das coisas: –

Ao analisá-las, nós as destruímos.”

Queridos amigos circenses

As linhas acima do poema Virando a Mesa, de William Wordsworth, são uma impressionante expressão de uma série de elementos centrais do Romantismo: uma propensão para o misterioso, a glorificação da natureza e do desconhecido acompanhada a uma aversão ao intelectualismo. Virando a Mesa data de 1798. Naquela mesma época, o poeta inglês John Keats queixa-se a um amigo escritor durante um jantar que a obra do cientista Isaac Newton tinha “destruído toda a poesia do arco-íris quando a reduziu às suas cores prismáticas.[1]

Como movimento cultural, o Romantismo começou na Europa no final do século 18 e durou até o final do século 19. No entanto, os sentimentos românticos de Keats mostram-se profundamente enraizados. Mesmo agora, pelo menos cem anos depois, eles estão latentes na maioria das reações à minha Primeira Carta Aberta (dezembro de 2015). Os autores dessas reações mostram-se zangados e perguntam por que nós devemos refletir sobre o circo, por que o circo deve ser ou se tornar arte e por que o ofício em si não seria suficiente?

As objeções são as mesmas que John Keats poderia ter feito: que a magia do circo é desfeita ao refletirmos e escrevermos sobre ele e que o circo é uma experiência que não pode ser traduzida em palavras. Que o circo é um lugar onde podemos nos aproximar de quem realmente somos, longe do mundo e do pensamento cotidiano.

A maioria das reações veio de pessoas que estão profissionalmente envolvidas com o circo de alguma maneira, seja como professores, profissionais ou artistas de circo – e é a última coisa das que me preocupam. Afinal, costumo me deparar com isso em minha prática como dramaturga de circo, trabalhando com artistas que relutam em dar um nome ao que fazem ou querem fazer por medo de arruiná-lo. “Ele” representa a criatividade intuitiva, a preocupação física, a sinceridade, o fluxo e a inspiração. Mas “ele” é também a autenticidade e a utopia que o circo representa para muitas pessoas. Desta forma, a dramaturgia e, por extensão, essas Cartas Abertas tornam-se a encarnação perturbadora daquilo que “o” arruinará: a reflexão.

Como o filósofo cultural holandês Maarten Doorman sugere em seu livro De romantische orde, esta interpretação da teoria e da análise como uma função de distanciamento que nos separa do que a vida é realmente é um dos legados permanentes do Romantismo. Outro legado do projeto romântico é definir o corpo e a mente, o pensar e o fazer, colocando-os como opostos. A linha romântica exalta e deseja o retorno do físico e do natural como fontes de criatividade espontânea e de inspiração em um mundo corrompido. De fato, na visão de Doorman, uma característica essencial da atitude romântica é que ela moldava o seu pensamento sempre em termos de paradoxos ou coisas aparentemente opostas.[2]

Vejamos o que a Wikipedia tem a dizer sobre o paradoxo: “Um paradoxo é uma situação aparentemente contraditória que parece entrar em conflito com o nosso senso de lógica, nossas expectativas ou nossa intuição. “Aparentemente”, porque o suposto conflito é geralmente baseado em uma falha lógica ou um erro de raciocínio.[3]

Assim, uma pessoa que pensa baseada em paradoxos coloca fronteiras e divisões entre as declarações, proposições ou conceitos que não são de fato opostos. Doorman também argumenta que a maioria dos paradoxos românticos emerge da estrutura emocional básica do Romantismo, a do desejo impossível. [4] Esta aspiração centra-se principalmente no ideal romântico da liberdade como autenticidade, espontaneidade e singularidade. Essas falhas linhas românticas estão, por sua vez, intimamente ligadas ao contexto cultural do século 19: a crença no progresso, o surgimento do capitalismo, a expansão industrial e o colonialismo.

Imagem de circo para a 2ª Carta Aberta aos Circenses de Bauke Lievens

 

O circo nômade moderno, que surgiu praticamente no mesmo período, também surgiu a partir dos paradoxos desse contexto cultural: o eu versus o outro, a razão versus a emoção, a norma contra a diferença, o velho versus o novo, etc. Desde então o mundo mudou consideravelmente e, no entanto, o circo contemporâneo muitas vezes se apresenta como uma prática que retoma as falhas linhas românticas antigas entre a razão e a emoção, o centro e o marginal, o ideal físico e a aberração.

O circo de hoje repousa grande parte de sua identidade numa imagem autoconcebida e bastante romântica de sua própria prática como uma forma de arte marginal que desfruta da sua própria liberdade. Mesmo deixando de lado a questão se essa imagem é exata na cena contemporânea, tornou-se muito difícil separar os clichês românticos que rodeiam o circo de uma compreensão do circo como um meio.[5] Como resultado, ainda reproduzimos os mesmos mitos circenses românticos em nossas práticas contemporâneas, que por sua vez, conduzem a performances que sempre levam o circo como o seu tema. Se quisermos designar uma área para uma pesquisa artística específica no circo, vale a pena refletir sobre os paradoxos e as imagens românticas que moldam e cercam o circo. Mesmo que seja apenas para poder fazer a pergunta subjacente ao mito: o circo existe como meio? Resta alguma coisa uma vez que tenhamos eliminados todos os mitos? Ou, na verdade, o circo é simplesmente o enredamento do mito, do paradoxo romântico e da nostalgia que o obscurece repetidamente?

Mito # 1

Comecemos com o que parece ser o primeiro grande mito do circo: sua posição “livre” às margens da sociedade, personificada pela caravana nômade de trailers e da lona e pela ideia de que o virtuosismo físico no picadeiro expressa a liberdade.

O Circo, pintura de Georges Seurat

 

O circo europeu moderno apareceu pela primeira vez na Inglaterra do século 18, quando o cavaleiro militar Philip Astley combinou as suas habilidades de cavaleiro com uma variedade de atos visuais e acrobáticos. Trabalhando inicialmente em arenas abertas, ele se mudou para “anfiteatros” de pedra ou de madeira cobertos, onde mesclou o círculo do picadeiro com o retângulo do palco. Isto deu origem a um modelo europeu de circos de pedra: edifícios redondos ou poligonais, onde a classe média poderia se divertir mediante o pagamento de uma entrada substancial. Naquela época, o circo estava firmemente ancorado nas cidades. Não saía em turnê. Os primeiros circos nômades, que viajavam por trem ou em carroças de madeira, apareceram na América um pouco menos de um século depois (cerca de 1850). A lona e os trailers foram, por sua vez, “exportados” para a Europa e desta forma o circo também se tornou uma atividade nômade nessa parte do mundo. Ele gradualmente foi se mudando dos anfiteatros dos centros urbanos para montar as suas lonas temporárias na periferia.

Quando examinamos mais de perto o contexto em que o circo nômade americano surgiu, vemos que – apesar do mito – não nasceu da busca de um bando de foras da lei procurando a liberdade romântica definitiva. Pelo contrário.

O circo nômade é de fato um resultado crescente de uma crença do século 19 no progresso. Caravanas e lonas eram as estratégias no impulso para a expansão capitalista liderada por grandes circos americanos como o Barnum & Bailey e o Ringling Brothers.[6] Foram decisões pragmáticas surgidas no centro de uma luta competitiva feroz: viajar simplesmente trazia mais dinheiro. A estética do risco físico também surgiu do desejo por dinheiro e crescimento, assim como a competição entre os circos disputada nos picadeiros como uma luta para apresentar o ato mais espetacular.[7]  Essa rivalidade capitalista também fez uso de categorias estéticas tais como o novo, o bizarro (o show bizarro), o exótico, o selvagem e o desconhecido. Cada um desses elementos pode ser rastreado até o Romantismo como um movimento de arte, mas há mais semelhanças entre o Romantismo e o circo nômade:

–  O foco no ofício e no trabalho físico como uma reação à alienação que a rápida industrialização trouxe consigo.

– O culto do corpo perfeito e da rejeição à razão.

– O culto da identidade “marginal” ou uma posição à margem da sociedade: o artista romântico / artista de circo como um fora da lei, o culto de “ser diferente”.

– O culto do sujeito criativo: o gênio romântico e o herói do circo.

Reza o clichê romântico que o circo é uma prática marginal nômade (e livre) – um estado de exceção isolado e caótico, onde regras diferentes são aplicadas àquelas que governam as vidas comuns e bem estruturadas. Nesta visão, o circo é pensado para exercer um poder subversivo e talvez mesmo político como uma forma de expressão cultural – uma ideia idealizada, no entanto, que esquece as raízes do circo nômade em um sistema capitalista vigente.

Mas o circo sempre se beneficiou do culto de seu “diferencial”. Hoje em dia, esse diferencial é vivamente mantido em várias formas de circo neo-tradicional. A característica romântico-nostálgica é empregada como uma estratégia de vendas (embora, muitas vezes, não deliberadamente). Dessa forma, repetimos as mesmas linhas falhas do paradoxo do século 19 entre a razão e a emoção, a marginalidade e o centro, a tradição e a renovação – pelo menos na imagem que apresentamos de nossa prática. Podemos (devemos?) nos perguntar o que exatamente faz essa nostalgia “diferente” ou única.

Parece que muitos coletivos jovens de circenses que viajam com suas lonas hoje também veem suas práticas artísticas como um ato de liberdade, subversão e “diferencial”. E isso é estranho. Cultivando uma posição “livre” às margens, caracterizamos nossa prática como algo em oposição a uma sociedade mais ampla, “não livre”. Desta forma, o circo que criamos torna-se uma prática “minoritária” em relação à cultura prevalecente (“maioria”). Mas, ao mesmo tempo, o mito da marginalidade influencia nossa prática artística: quando a caracterizamos como algo que está num conflito romântico e idealizado com o mundo que circunda a lona do circo, torna-se muito difícil atrair este mundo para ela. O resultado é que o nosso trabalho é principalmente sobre o próprio circo e apenas raramente sobre o mundo. Com esse espírito, é quase impossível criar um trabalho subversivo.

Mito # 2

Visto no contexto de sua história cultural, o circo é um retrato das capacidades do homem moderno e a sua relação com a tecnologia. Como já foi mencionado na Carta Aberta anterior, é uma expressão da crença do século 19 no progresso e na evolução tecnológica. Várias linhas errôneas que atravessaram as crenças do século 19 sobre natureza e cultura se manifestam no corpo do artista de circo. No picadeiro, por exemplo, os artistas encarnam a esperança, comum naquela época, de que o homem se torne “livre” com o auxílio da tecnologia.

Ao mesmo tempo, vemos que a tecnologia não é empregada para superar a natureza, mas sim é usada para “tornar-se a natureza”, imitando um voo, estados de equilíbrio, etc. Este esforço para transformar a tecnologia em natureza parece uma contradição, mas é, na verdade, um paradoxo. Afinal, é característica da estrutura emocional do Romantismo esse anseio por um ideal. Os românticos são loucos por ideais como o autêntico tema “livre”, o exótico, o selvagem, o desconhecido, a natureza infantil, intocada e virgem e um passado arcaico – e tudo isso com a plena consciência de que é impossível coincidir para alcançar o que estão desejando.

O ideal do homem natural ou do l’homme sauvage  (homem selvagem) é um projeto que está condenado ao fracasso, mas isso não impede que o artista romântico ou o artista de circo continue tentando alcançar o ideal.[8] Assim, o circo e o Romantismo almejam juntos o horizonte radiante da utopia, mas ambos também circulam em vão ao redor do vazio gritante do trágico (e do impossível).

Mas e o circo que criamos hoje? Em seu livro Rousseau en Ik, Maarten Doorman sugere que os ideais românticos ainda moldam aspectos do nosso pensamento contemporâneo. Assim como os românticos, estamos procurando por nossos “eus verdadeiros e livres”. Ansiamos por um modo de vida honesto que deveria nos aproximar de quem “realmente somos”. De acordo com Doorman, nessa busca estamos (assim como os românticos) obcecados pela autenticidade – uma mania exemplificada pela predileção atual pelo artesanato nas artes, por alimentos orgânicos, emotividade na mídia, reality shows, passeios de um dia nas “reais” favelas do Rio de Janeiro, a súbita popularidade do tricô, do glamping (acampar com glamour) e na confecção de nossa própria geleia. As maneiras pelas quais comemos, fazemos compras, viajamos e sonhamos revelam todos os sinais dos maiores desejos românticos: o desejo de autenticidade.

Ao contrário do teatro, o circo sempre enfatizou que tudo que é apresentado no picadeiro é real. Tigres reais, perigo real, pessoas que realmente podem voar.

No circo do século 19, essa suposta autenticidade só poderia ser conseguida (paradoxalmente) através do uso de tecnologia e de novas técnicas (luz elétrica, motores, dispositivos circenses e objetos).

No circo de hoje, muitas pessoas querem fugir desse tipo de espetáculo e da representação do homem como um super-humano. Nossa obsessão com a autenticidade toma então a forma de um anseio romântico por tudo o que é velho, enferrujado e “genuíno”, ou como uma busca pela humanidade do artista de circo, pela história pessoal. Desta forma, o picadeiro de hoje não é mais um lugar onde uma pessoa se “mostra”, mas um lugar onde simplesmente se “é”.

Aqui também, parecemos esquecer que o desejo de autenticidade é um desejo impossível. Afinal, quando apresentamos ou rotulamos algo como autêntico ou puro (sejam hambúrgueres feitos de carne de verdade ou a pureza do circo), tornamo-nos imediatamente um fenômeno encenado e, portanto, irreal. Ou, como diz Doorman: “Quem quer ser real não é, por definição, real, porque a consciência desse desejo também traz a não autenticidade. […]Desta forma, o nosso desejo de autenticidade é satisfeito com a encenação. [9]Assim, na verdade, só podemos chamá-lo de” autenticidade encenada “.[10] Quando esta vergonhosa questão de autenticidade é trazida para o mundo das artes cênicas, a encenação é dobrada.

Imagem que ilustrava a 1ª Carta Aberta aos Circenses de Bauke

 

No entanto, no discurso de muitos artistas circenses atuais, o circo é “mais real e sincero” do que teatro porque envolve risco físico real. De certa forma isso é verdade. Mas também é um pouco “menos real”. Afinal, embora a habilidade de fazer uma plateia aceitar a ação no palco como possível (ou plausível) foi por muito tempo um dos testes mais cruciais do teatro, quando se trata de virtuosismo físico é exatamente o oposto: o circo tenta nos fazer acreditar que algo é impossível, aumentando assim o status do artista de circo, que, no entanto, consegue alcançá-lo, criando assim uma experiência de magia. Esta experiência surge de maneira semelhante no teatro de marionetes: sabemos que o boneco é um objeto inanimado e ainda assim acreditamos (e gostamos de) que estamos vendo um ser vivo se mover. Esta alternância entre crença e descrença gera uma experiência de magia. [11]

O perigo físico ao qual o artista de circo se expõe a só reforça a aparência de autenticidade, mas na realidade um artista de circo nunca realizará um truque que não tenha dominado completamente. Este domínio é um produto da repetição constante dos mesmos movimentos ao longo de um período de treinamento. Ou, em outras palavras, o treinamento aumenta o potencial físico do artista com o objetivo de criar uma ilusão de impossibilidade que então brevemente se dissolve pelo “sucesso” do truque.

No entanto, nossa excessiva identificação com a imagem romântica do circo como um lugar de realismo e sinceridade nos fez começar a acreditar no mito da autenticidade. Um mito, aliás, que o próprio circo inventou. Mas a magia e a admiração não estão tão relacionadas com o fato de algo ser “autêntico”, como acontece com nosso próprio olhar condicionado, que gosta de rotular as coisas como “reais”.

E é precisamente essa consciência de “duplicidade” que o circo contemporâneo parece esquecer. A consequência é que existe atualmente uma enorme e infeliz confusão entre a prática e a performance na criação contemporânea de circo. Muitos acreditam que praticar circo é o mesmo que criar e fazer circo. Nada poderia ser menos verdadeiro. Praticar circo é um esporte de alto nível. Criar circo é algo diferente. Criar circo ocorre no espaço da performance, não na prática do circo.

Criar (e fazer) circo é sempre sobre um ‘fazer’ encenado, um “agora” encenado, um “aqui” encenado e um “ser” encenado. O que une estes quatro é que – do ponto de vista do espectador – é sempre uma encenação da realidade e nunca a própria realidade. O espaço entre a prática e a performance é, portanto, o espaço de tradução e criação. A distância entre os dois é o espaço da dramaturgia.

No entanto, muitos têm medo dessa dramaturgia (e, por extensão, do dramaturgo também). Por quê? Porque o dramaturgo mostra que arte e vida não são as mesmas? Que isso também é mais uma variação no desejo romântico por um ideal em que a arte se torna (parte da) vida e a vida se torna arte? Ou há outra razão?

Mito # 3

Corpos e água, cena da Kask Conservatorium, escola de Arte/Foto Stine Sampers

 

Analisando cuidadosamente o pode ser visto no picadeiro: o corpo circense em relação a um objeto (tecnologia). Eles se relacionam entre si funcionalmente: corpo e objeto “trabalham juntos” para alcançar um objetivo comum, que é domar e tentar superar as leis naturais, como a gravidade. Vemos também que o corpo circense não é um corpo natural, mas um corpo altamente treinado e tecnológico. Na verdade, é um corpo que é disciplinado e a relação funcional com o objeto faz com que o corpo em si se torne um objeto.[12]

Em outras palavras, o corpo circense encarna um ideal romântico de liberdade (voando, flutuando, superforça), enquanto ele mesmo sendo um corpo extremamente livre, disciplinado e perfeito. Desta forma, o circo cria a aparência de liberdade (na performance) aplicando uma disciplina extrema ao corpo (na prática). Desta forma, o circo parece propagar a noção de que a disciplina e a tecnologia são essenciais para alcançar um grau particular de liberdade (física). Mas será mesmo verdade? E, mais ainda: é essa uma visão do homem que se conecta com a maneira como pensamos atualmente sobre quem somos ou queremos ser?

Vamos focar nessa disciplina do corpo por um momento. Em seu renomado livro Disciplina e Punição: O Nascimento da Prisão (1975), o historiador e filósofo francês Michel Foucault esboçou um novo quadro conceitual que começou a tomar forma no final do século 18. Foucault afirma que o grande aumento da população europeia naquela época exigia um emprego mais lucrativo do povo; havia mais pessoas, portanto, a produção (de bens e serviços) tinha que ser aumentada. Este desenvolvimento exigiu uma mudança nas maneiras como o poder foi exercido. Enquanto antes do século 18 o poder fazia uso, acima de tudo, de exibições externas e formas explícitas de opressão, daí em diante havia simplesmente muito mais pessoas para poder exercer o poder dessa maneira.

As pessoas tinham que ser levadas a assimilar a ideia de que é importante empregar seus corpos de forma útil e dividir seu tempo e espaço de uma forma útil. Para isso, os que estavam no poder conceberam uma série de mecanismos “disciplinadores” que assegurassem que os corpos dos cidadãos “internalizassem” a operação do poder. Esta abordagem é a mais eficaz em locais que têm acesso direto ao corpo, como a prisão, o exército, a escola, o hospital e a clínica psiquiátrica.[13]

Os principais mecanismos “disciplinadores” que visam a formação do “homem útil” (l’homme machine) são a repetição, o corpo e a ação de engrenagem entre si e o acoplamento do corpo e do objeto.[14] A comparação permite estabelecer um padrão e determinar quem ou o que se desvia da norma de produtividade. Aqueles que não cumprem a norma (crianças, doentes, pacientes psiquiátricos, prisioneiros, etc.) são aqueles cujos corpos recebem a maior disciplina por meio de exercícios, observação, supervisão e terapia.

O objetivo é sempre aumentar a utilidade do corpo através da internalização da obediência física e, portanto, há sempre uma conexão proporcional entre a eficiência crescente de um corpo e o aumento do poder político sobre esse corpo. Ou, nas palavras de Foucault: “A disciplina aumenta as forças do corpo (em termos de utilidade econômica) e essas mesmas forças diminuem (em termos de obediência política)“.[15] Foucault enfatiza que, dessa forma, o poder disciplinador “fabrica” indivíduos ou sujeitos (em francês, ele escreve “les sujets“, que significa literalmente “aqueles que são submetidos”). [16]Assim, em nosso sistema social, o indivíduo não é “amputado, prejudicado ou oprimido; pelo contrário, é cuidadosamente fabricado com a ajuda de uma tática de corpos e forças.”[17]

O circo é, de fato, a manifestação ideal (porque pública) dessa mudança de modo de pensar sobre o assunto no final do século 18. O circo também é uma “instituição” onde o corpo era e é disciplinado pelo exercício, pela repetição e pela ligação funcional do corpo e do objeto (treinamento). Deste modo, o virtuoso corpo treinado encarna o ideal do corpo útil. Através do exercício e da repetição, o corpo circense torna-se altamente individualizado e distingue-se da multidão. No entanto, um artista de circo não é um indivíduo que se desvia da norma, mas é uma encarnação ideal da norma: força, tempo e espaço não são desperdiçados, mas perfeitamente otimizados. E aqui também a regra se aplica que a obediência política do corpo aumenta à medida que as forças do corpo se expandem em termos de utilidade (econômica).

Pesquisa artística: criando novos mitos

Ao longo da história, o circo tem insistido em sua liberdade e diferenciação e fez desses valores sua imagem e sua marca registrada. No século 19, o corpo circense disciplinado era, paradoxalmente, a encarnação ideal do desejo de liberdade – e assim este circo romântico se torna um delicioso e enganoso salão de espelhos. Como um verdadeiro mestre da ilusão, faz uso inteligente do espaço entre a condição física real (emergindo da disciplina) e o que é encenado (liberdade) e esse ponto de diferença é exatamente onde o circo brilha, se mostra e floresce. Ela prospera precisamente na distância entre o real e o irreal, entre o que está realmente acontecendo no picadeiro e o que essas ações fazem com a nossa imaginação. É, na verdade, um grande e delicioso paradoxo. E é precisamente por isso que o próprio circo sempre foi o promotor mais sagaz de seus mitos autoinventados.

Mas, mais de 100 anos mais tarde, Foucault nos ensina que o terceiro grande mito do circo, o do virtuosismo físico como a encarnação da liberdade, é justamente uma manifestação do poder que restringe a liberdade pela qual o circo anseia. [18]

Afinal, é na disciplina que a norma se torna extremamente visível. Ainda assim, as imagens e os mitos com os quais cercamos nossa prática e as fontes que usamos em nossos processos criativos não mudaram muito. Na verdade, é o oposto: chegamos a acreditar no nosso mito autoconcebido que diz que o virtuosismo físico é uma expressão da liberdade (artística e política). Como resultado, o espaço entre o que envolve o circo (imagem, mito) e o que realmente ocorre no picadeiro não é mais um paradoxo. Tornou-se uma verdadeira contradição. Uma contradição que, por sua vez, é reforçada pela confusão presente entre a prática e a performance acompanhada pela convicção de que o que fazemos no picadeiro é real.

Por todas essas razões, o circo que se baseia no virtuosismo no sentido tradicional não incorpora a liberdade. Não aos nossos olhos do século 21. Não é rebelde, nem subversivo. Pelo contrário, está repetindo um repertório existente, trabalhando um mito antigo e bem enraizado. É um desfile de corpos perfeitamente treinados e disciplinados que se conformam com a norma do que é considerado belo, útil, viril ou sexy. Por mais que tente se apresentar como um lugar subversivo à margem da sociedade, esse tipo de circo (agora) carece de todo o poder político e artístico.

Por isso, é crucial que tomemos consciência das formas como o corpo é disciplinado pela maioria das técnicas circenses. É hora de querer mais de um público do que seus ‘aaahs’ e ‘ooohs’ de admiração. É importante querer ser mais do que máquinas obedientes cujos corpos, através da disciplina de “treinamento”, nos mostram quem satisfaz a norma e quem não. É necessário experimentar outras relações com o virtuosismo. Outras relações com os objetos que nos transformam em objetos. Um espaço crítico cheio de potencial encontra-se na relação entre o objeto que treina nosso corpo e os indivíduos que somos – um mundo inteiro de possibilidades.

Quando deixamos de nos identificar com o virtuosismo, pode aparecer um espaço no qual podemos dizer algo interessante sobre as coisas, as dinâmicas e os mecanismos que disciplinam nossos corpos atuais. Quando paramos de “mostrar” nossos superpoderes, pode aparecer um espaço no qual podemos ser “vistos” como seres humanos comuns. O desafio não é fundir-se com a disciplina que treina nossos corpos, mas esculpir um espaço “livre” para os indivíduos que somos.

Vamos parar de pensar que a exibição nostálgica de trailers e lonas e nosso conhecimento do repertório e tradição são atos de liberdade artística. Voltemos a entrar na excitante área da diferença entre a prática e a performance que é característica de toda forma de arte. Desejemos mais uma vez ansiosos, plenamente conscientes de que a liberdade que buscamos é um objetivo impossível. Vamos mais uma vez ousar ser irônicos e trágicos.

Mas, acima de tudo, tentemos esquecer todos os mitos românticos que cercam e moldam as nossas práticas. Procuremos o potencial do circo como um meio, em vez de repetirmos os mitos que o obscurecem. Vamos partir de shows que confirmem a norma e inventemos novos mitos. Vamos refletir sobre o que significa ser um corpo virtuoso no picadeiro. Examinemos nossas relações com nossos objetos. Vamos descobrir como tudo isso pode nos dizer algo sobre nosso mundo contemporâneo e nosso lugar nesse mundo.

Gostaria muito de ouvir as suas opiniões. Em 2017, organizarei vários encontros para conversar e discutir juntos os diferentes tópicos que essas cartas tentam abordar. Enquanto isso, suas cartas, e-mails e comentários são bem-vindos no email: bauke.lievens@hogent.be.

Até breve,

Bauke Lievens

 

*Tradução – Carmelita Benozatti

 

Esta é a segunda carta de um ciclo de Cartas abertas ao Circo escrita durante o projeto de investigação de quatro anos “Entre o ser e o imaginável: por uma metodologia de pesquisa artística no circo contemporâneo” – financiado pelo fundo de investigação da KASK Escola de Artes (Ghent, BE).

[1] Doorman, M. (2012). De Romantische orde. Amsterdam: Prometheus/Bert Bakker, p. 100.

[2] Doorman, M. (2012). De Romantische orde. Amsterdam: Prometheus/Bert Bakker.

[3] https://nl.wikipedia.org/wiki/Paradox (logica)

[4] Doorman, M. (2012). De Romantische orde. Amsterdam: Prometheus/Bert Bakker, pp. 11-48.

[5] Agradecimentos a Alexander Vantournhout por iniciar a ideia no Primeiro Encontro sobre Circo, Janeiro 2016, KASK/Vooruit, Ghent, Belgium.

[6] Jacob, P. & Raynaud de Lage, C. (2005). Extravaganza! Histoires du cirque américain. Montreuil-sous-Bois: Editions Théâtrales, pp. 59-76.

[7] Ibid, pp. 13-24.

[8] Doorman, M. (2012). Rousseau en Ik: over de erfzonde van de authenticiteit. Amsterdam: Prometheus/Bert Bakker, p. 38.

[9] Ibid, p. 37.

[10] Berkeljon, S. (25/02/2012). Authenticiteit is nep. DeVolkskrant. http://www.volkskrant.nl/archief/-authenticiteit-is-nep~a3201937/

[11] O crítico teatral flamengo Tuur Devens intitula de “Quinta Parede”. Ver: Devens, T. (2004). De Vijfde Wand: Reflecties over figurentheater en circustheater. Gent: Pro-Art, pp. 6-10.

[12] Ver a Primeira Carta Aberta e a noção de “dispositivo” de Giorgio Agamben.

[13] A criação do “homem útil” (l’homme machine) ocorre por meio da divisão, comparação e classificação das ações do corpo e do tempo e espaço onde o corpo está localizado.

[14]  Foucault, M. (2010). Discipline, toezicht en straf: De geboorte van de gevangenis. Groningen: Historische uitgeverij, p. 255.

[15] Haegens, K. (2016). Niemands slaaf: verlangen naar de innerlijke grens. De Groene Amsterdammer, Jrg. 12(140), pp. 36-39.

[16] Foucault, M. (2010). Discipline, toezicht en straf: De geboorte van de gevangenis. Groningen: Historische uitgeverij, p. 237.

[17] Ibid, p. 299.

[18]  Doorman indica que a crítica do sujeito de Foucault também não escapa ao paradigma romântico. Afinal, “seu ardor nietzscheano e quase malicioso para revelar o autêntico sujeito como ficção implica um desejo utópico por um indivíduo livre vivo, um indivíduo que não é capturado pelas estruturas refinadas do discurso que o disciplina.”  Doorman, M. (2012). De Romantische orde. Amsterdam: Prometheus/Bert Bakker, p. 43.

Clique aqui para ler a 1ª Carta Aberta aos Circenses de Bauke Lievens

 

Capa: Erica Stoppel, no Circo Zanni/Foto Asa Campos

 

One Response to "“O mito chamado circo”"

  1. Bel Mucci disse:

    Sensacional está segunda carta, mais provocadora, esclarecedora e intrigante ainda. Obrigada pela tradução e publicação!

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