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Religião é uma das principais causas de violações
Por André Miranda, de O Globo
O título do trabalho de Ana Smile não passava de uma brincadeira com o jeito de falar abobalhado do Robin na antiga série de TV do Batman. Mas, por trás da escolha de palavras no “Santa blasfêmia”, já se podia temer a reação de religiosos mais radicais contra sua arte.
Em “Santa blasfêmia”, a brasiliense de 32 anos utilizou santos católicos como molde para criar pequenas estátuas de ícones pop. Nos 15 modelos produzidos, Nossa Senhora já virou o Batman, o David Bowie, a Mulher-Maravilha, o Chapolin e até o Vingador, de “Caverna do Dragão”, com direito a chifrinho de demônio. O Menino Jesus foi transformado no Menino Prodígio Robin, e há santos no formato do Coringa. Ana, que hoje mora em Goiânia e divide seu tempo entre o emprego de caixa num bar e sua produção artesanal, divulga as peças na internet e as vende numa loja em Brasília há mais ou menos um ano. Até que, há cinco dias, começaram a chegar os e-mails de ódio.
— Uma pessoa passou em frente à loja, ficou revoltada e exigiu que eles tirassem as peças da vitrine. As vendedoras se recusaram, mas ela pegou meu e-mail e espalhou para seu grupo na igreja. Desde então, não tenho mais tempo de nada, a toda hora chegam mensagens. Tem muita gente me apoiando, mas também tem gente falando que vai me denunciar à Justiça — conta Ana.
A censura religiosa é uma das violações que mais crescem no mundo, segundo o relatório “Arte sob ameaça”, divulgado nesta semana pela organização internacional Freemuse. Uma de suas consequências, aponta o texto, é o medo que passa a acompanhar todos em criar livremente. O fanatismo pode estar em todo o canto e, como provou recentemente a História, um raio cai, sim, no mesmo lugar. Em janeiro do ano passado, em Paris, cartunistas e outros funcionários do jornal satírico “Charlie Hebdo”, num total de 12 pessoas, foram mortos a tiros. Os assassinos foram dois radicais islâmicos descontentes com charges publicadas que satirizavam Maomé. “O profeta foi vingado”, gritaram eles enquanto atiravam.
Na mesma Paris, em novembro, foi a vez de a casa de shows Bataclan ser alvo de ataques de um grupo de homens armados da organização terrorista Estado Islâmico. A chacina que matou 89 pessoas ocorreu durante um show da banda americana Eagles of Death Metal. Nenhum dos músicos se feriu, mas grupos como U2, Foo Fighters, Motörhead, Coldplay e Deftones cancelaram apresentações em Paris que estavam marcadas para os dias seguintes à tragédia. O objetivo dos radicais havia sido alcançado: instaurava-se o medo.
— Dezenas de pessoas foram mortas no Bataclan sem terem provocado ninguém. Era gente que estava num show se divertindo. O problema é que a lei do Islã proíbe esse tipo de coisa, não permite que homens e mulheres se misturem em teatros, salas de concerto ou estádios de esporte. São proibições da lei, está no texto — argumenta a escritora e ativista Ayaan Hirsi Ali, uma conhecida crítica do Islã, autora de livros como “Herege” e “Infiel”, lançados no Brasil pela Companhia das Letras.
O fantasma do medo acompanha Ayaan há mais de uma década. Ela nasceu na Somália, mas na época vivia na Holanda, onde foi eleita deputada. Em 2004, juntou-se ao cineasta Theo van Gogh para produzir o curta-metragem experimental “Submission”, sobre o tratamento de mulheres na cultura muçulmana. Só que, pouco depois, Van Gogh foi assassinado a facadas numa rua de Amsterdã. Para piorar, uma carta foi presa a seu corpo informando que Ayaan seria a próxima vítima.
— Ando com segurança 24 horas por dia, já tinha mesmo antes de o Theo ser morto. Mas infelizmente ele não. O pior, para mim, é conviver com um sentimento de culpa por sua morte — afirma Ayaan, que vive hoje nos EUA.
Trágica e coincidentemente, a chacina do Bataclan ocorreu no mesmo dia em que a Unesco organizou uma reunião, também em Paris, com o tema “O status do artista e da liberdade artística”. Antes, em janeiro, na sequência dos ataques ao “Charlie Hebdo”, o assunto foi tema de uma carta assinada por 28 ministros de Cultura da Europa. Dizia o texto: “Desde os tempos imemoriais, as artes têm sido uma inspiração para a reflexão, dando origem a novas ideias e lutando contra a intolerância e a ignorância”.
A censura religiosa, porém, está longe de ser exclusividade europeia ou ação pontual de um grupo no interior do Brasil. Em 2014, o filme “Rio, eu te amo”, uma produção com elenco internacional, sofreu um veto da Igreja Católica por utilizar o Cristo Redentor numa sequência. A cena fazia parte de um episódio dirigido por José Padilha, e mostrava Wagner Moura como piloto de asa-delta, reclamando da vida com o Cristo ao fundo.
AMEAÇAS NOS EUA E NO NEPAL
Num comunicado, a Arquidiocese primeiro disse que cenas “foram consideradas ofensivas à imagem do Cristo e, consequentemente, à casa dos católicos”. Depois de a polêmica ir parar na imprensa, voltou atrás e liberou a imagem.
— O que aconteceu com “Rio, eu te amo” é um espelho do que ocorre sempre no mercado audiovisual: você não pode filmar alguma coisa por contrariar a expectativa de uma instituição — afirma Vicente Amorim, um dos diretores de “Rio, eu te amo”. — Eu me lembro de quando filmei na Hungria “O homem bom” (2008), que é um filme completamente antinazista e foi baseado numa peça escrita por um judeu, mas não é um simples retrato em preto e branco de vítimas e algozes. Houve bairros em que não éramos bem-vindos por tratar do assunto daquela maneira.
Nos EUA, o pintor mexicano Enrique Chagoya foi outra vítima de ódio. Em 2010, ele participou de uma exposição no Museu de Loveland, no Colorado, com litografias de seu livro “The misadventures of the romantic cannibals”. O trabalho tinha como objetivo criticar os abusos sexuais na Igreja e utilizou a imagem de Cristo.
— Um político do Tea Party decidiu fazer campanha em cima do meu livro, dizendo que eu mesclava ícones religiosos a temas sexuais. Fizeram protesto em frente ao museu e passei a receber e-mails me ameaçando — conta Chagoya, que é professor na Universidade Stanford. — Até que uma mulher foi de Montana até o Colorado de caminhão, entrou no museu e destruiu a obra com uma barra metálica.
Do outro lado do mundo, em Katmandu, no Nepal, o pintor Manish Harijan sofreu ameaças de morte por sua arte em 2012. Como a censura religiosa não escolhe credo, ele foi vítima de um grupo hindu descontente com a exposição de sua obra na Siddartha Art Galley. O motivo é parecido com o de Ana Smile: os quadros de Harijan colocam deuses hindus vestidos como super-heróis ocidentais e fazendo poses nada santas.
— Eles invadiram a galeria, começaram a me procurar. Disseram que poderiam me processar, que eu poderia ser exilado. E a galeria passou a ter medo de exibir meus quadros — conta Harijan.