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Respeitável Público

 

 

“Após 22 anos, a brincadeira está acabando para o Teatro Brincante que pode desaparecer para dar lugar a novo espigão na Vila Madalena”

Juliana Sayuri 
Eis Tonheta: um brasileiro, andarilho fanfarrão, arlequim, bufão, itinerante nordestino, mambembe, pícaro, saltimbanco moderno, sátiro, um tanto vagabundo. É desses tipos populares que ziguezagueiam por aí, esses esfarrapados que carregam na carroça só trapos e histórias Brasil adentro. Um sem-teto. Do tipo que não tem mais vez numa cidade como São Paulo.

Tonheta é alter ego de Antonio Nóbrega, artista pernambucano arretado, cabra culto, vocês conhecem. Mas quem conta essa história sou eu, João Sidurino, um mestre de cerimônias, digamos, amador. Mestre Siduca, muito prazer. Também sou fruto da fértil imaginação de Nóbrega, inventado justamente para ser narrador das desventuras desse carroceiro andante batizado Tonheta. Mas, antes de enveredar por outras gavetas da memória, deixe lhes contar logo o argumento dessa nova desventura: passa que Tonheta pode perder seu cantinho cimentado na Rua Purpurina, nº 428, Vila Madalena. O Teatro Brincante, casa paulistana de Nóbrega e companhia, tornou-se palco de querelas judiciais por interesses imobiliários. No dia 8 de julho, o jornalista Gilberto Dimenstein catracou: “Um dos mais importantes pesquisadores das tradições culturais brasileiras, o músico (…) Antonio Nóbrega criou um teatro chamado Brincante. (…) Mas esse espaço de resistência está ameaçado. Uma construtora comprou o terreno e pretende fazer ali mais um prédio na Vila Madalena”. Respeitável público, eis o imbróglio.

Mas Tonheta é safo. E Nóbrega, obstinado. Se desconhecerem, faço as honras nesse primeiro ato: Antonio Nóbrega é nascido no Recife de 1952, ator, bailarino, coreógrafo, escritor e músico, diretor premiado, um cara meio intelectual, meio de esquerda. É modesto e fica bravo se chamado de “senhor”. Até os 18, só brincava música erudita. De repente, cruzou-lhe o caminho Ariano Suassuna, que Deus o tenha, convidando o jovem a integrar o Quinteto Armorial, movimento artístico que amalgamava cultura erudita e raízes populares lá nos nossos sertões. Entre folclore, folia, cordel, circo e literatura, Nóbrega se descobriu o que é: um brincante. “Brincante é uma palavra preciosa. É sentimental e lúdica, mas também tem riqueza semântica. É um arcaísmo presente no português. Quer dizer: artista popular”, Nóbrega define, todo prosa, olhos castanhos e óculos, fios brancos, numa mesinha Brahma vermelha nos bastidores do teatro. Nóbrega deu vida a Tonheta graças à trajetória nessa epifania suassuniana, ao lado de coadjuvantes ilustres como o escritor Bráulio Tavares, o artista Romero de Andrade Lima e Rosane Almeida. 

Desculpe se Mestre Siduca, eu-lírico amostrado, se perder nas memórias fluidas do brincante. Só sei que foi assim: Nóbrega encontrou sua companheira, a bela Rosalina, num espetáculo no palco pernambucano da década de 1980. Rosane é atriz paranaense, dançarina e malabarista valente, leves cachos castanhos e charmosos olhos claros. Uma senhora presença de palco. “Nós nos vimos, olho no olho. E assim foi… Noivamos em Curitiba, casamos em Recife, mudamos para São Paulo.” Juntos estrearam o espetáculo Brincante no I Festival de Curitiba, em março de 1992. Após a estreia, Nóbrega procurou palcos paulistanos para incluir as histórias de Tonheta – mas todos ou estavam ocupados ou não queriam lhe ceder as nobres noites dos fins de semana. Nóbrega morava na Raposo Tavares, perto do Morro do Querosene. Perambulando no labirinto da Vila Madalena, encontrou um galpão, uma fábrica de lustres abandonada. “E a Vila não era nada disso que é agora. Ainda tinha uma atmosfera de cidade pequena, lembrava bairros antigos, Olinda e tal.” Encasquetou, pois, com a ideia de fundar o próprio teatro. “Simples assim”, diz – salvo que, na época, os pombinhos mal tinham tostões para alugar uma garagem para guardar as tralhas teatrais. Passo a palavra para Rosane: “Na minha ingenuidade, realmente pensei que a gente podia transformar um galpão num teatro. Uns disseram que seria loucura. Outros, uma ideia maravilhosa. Decidimos arriscar, se encontrássemos o lugar”.

Encontraram. Os Nóbregas apertaram as mãos com seu Cézar Alves, proprietário do predinho na Rua Purpurina, “muito generoso”, no dizer da atriz. O acordo de cavalheiros: a trupe faria melhorias na construção, podendo ficar (muitos) meses sem pagar aluguel. “Aí mora a lenda: eu disse que iríamos construir um teatro – o que eu não disse era que a equipe para essa empreitada era Nóbrega, eu e nossos dois filhos, de 13 e 5 anos.” Assim foi: a casa foi remendada aos poucos, num ritmo lento ma non troppo e, acordo cumprido, os Nóbregas passaram a pagar o aluguel direitinho. “Bom é que Brincante tinha um quê de Bispo do Rosário, despojado, despretensioso. Assim, aproveitamos muitos objetos. A cultura popular também transita nessa estética criativa, de poder criar uma espada a partir de uma colher.” O público primeiro se aconchegava nos degraus de cimento para assistir às estripulias de Tonheta que voltaria aos palcos em novembro de 1992. Depois, Nóbrega decidiu espalhar folhas de jornal para disfarçar a frieza do cimento nas nádegas alheias – ao longo de sua trajetória, mais de 57 mil nádegas. Tempos depois conseguiu almofadinhas e voilà, cadeiras. De lá pra cá, a fábrica de lustres virou Teatro, que virou Teatro-Escola, que virou Instituto Brincante.

O diabo é que agora a brincadeira pode parar. O predinho passou das mãos do finado seu Cézar pai para seu Cézar filho, que hoje conta 65 anos. Cézar diz que nunca quis vender, apesar da atiçada procura das construtoras. A certo ponto, cedeu por suas razões particulares. Passou assim: no dia 20 de maio, Nóbrega recebeu uma tal “notificação para desocupação do imóvel”, expressão palavrosa para o simples “simbora”. Depois outra notificação, que venceu agora na segunda-feira 21 de julho. É a tal da “ação de despejo”, que tramita no Fórum de Pinheiros. Ticando no relógio, 15 dias para a trupe desocupar o espaço. 

Espaço, aliás, que preciso descortinar: terreno de 850 m², alugados por cerca de R$ 10 mil; para arrematar, especula-se por volta de R$ 6 milhões. Por fora, uma entrada simples, muros azuis, portões lilás. Por dentro, uma salinha administrativa, outra para aulas de dança, outra para instrumentos musicais e quinquilharias e um teatro com 110 lugares. No caminho, banquinhos azuis, janelas lilás, paredes amarelas. Num pequeno corredor, mil recordações pregadas nas paredes, entre recortes de notícias de jornal, xilogravuras, ilustrações, fotos de seus mais de 70 espetáculos e pequenos totens, como garfos retorcidos e miniaturas de violões. Um álbum de família.

Sentimentalidades à parte, é preciso narrar os dizeres do diz-que-me-diz-que:

– Cézar: Nóbrega me fez uma proposta para comprar o imóvel, mas estava aquém do valor esperado.

– Nóbrega: Tenho duas casinhas na Rua Purpurina. Estava recebendo propostas agressivas de incorporadoras e pensei: se estou, Cézar também está. Quis encontrá-lo para fazer uma proposta. Marcamos uma conversa, mas Cézar já foi acompanhado por um advogado, que se dizia representante da… Era Pedra Furada? Não, Pedra Forte. Nunca tive chance de fazer uma proposta.

– Cézar: Não é verdade. Só depois fechei negócio com a Pedra Forte, mas não vou entrar em detalhes sobre valores. Desculpe, mas não dá pra viver sem dinheiro.

– Nóbrega: Ele tergiversou. Estava apalavrado com a construtora, sim, senhor. Ele burlou a lei do inquilinato.

– Cézar: Ele está lá há 20 anos, mas caramba, eu nasci lá. Meu pai construiu nesse terreno. Vivi minha vida inteira na Vila Madalena. Não sei porque estão fazendo tanta confusão agora, só quero viver minha velhice em paz. Do meu lado não vale nada?

– Nóbrega: Não sei muita coisa nessa vida, não. Do pouco que sei, penso: não vale ter uma discussão sobre espaços públicos nessa desordenada invasão imobiliária na cidade? Brincante tem papel social. Como é que a especulação imobiliária pode simplesmente engolir territórios como esse?

Vila Madalena nasceu Vila dos Farrapos, por volta de 1910. Mas farrapos, desculpe a licença poética, ali não têm mais vez. E apois diz Cássio Calazans, 57 anos, 57 na Vila: “É um bairro despojado, para um bom café, entre suas ruas estreitas, aclives e declives”. Presidente da Sociedade Amigos de Vila Madalena, o publicitário de óculos quadrados, jeans e paletó lamenta: “O Brincante já é um teatro tradicional. Se se perder, o bairro pode perder mais identidade, graça, charme. Pode virar uma Moema. E é o que acontece na cidade inteira”. Visse ainda a palavra do urbanista Nabil Bonduki, 60 anos, 35 de Vila: “Era um bairro popular, de imigrantes portugueses, com casinhas pequenas, marcenarias, serralherias, vidraçarias. Sempre foi um bairro misto. Na década de 1970, recebeu muitas repúblicas de estudantes. Mas nos anos 1980 começaram transformações urbanísticas, um processo de verticalização localizado – na época, tinha até o movimento ‘antes que a casa caia’, contra a construção de prédios”. Vieram outros fluxos, como artistas, artesãos, movimentos culturais – além de bares, muitos bares. A vilinha boêmia se elitizou, ficou mais “sofisticada” – gente diferenciada, sacomé. Professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAUUSP) e relator do Plano Diretor, o arquiteto de óculos vermelhos e camisa azul florida, informal no seu gabinete de vereador, dá pistas para preservar o Brincante, um tal de Zepec-APC, que quer dizer “zona especial de proteção cultural – área de proteção cultural”. Diz lá no Diário Oficial: “APC: bens, imóveis, porções do território e espaços dotados de especial e peculiar interesse público relacionado ao seu uso e atividades ou valor afetivo, simbólico, histórico (…) como teatros e cinemas de rua, circos, centros culturais, residências artísticas e assemelhados”. 

Mas nesse nó cego, os Nóbregas querem querelas não. Querem ficar, se possível. “A rigor, as ideias não têm espaço físico, eu sei. Mas tenho afeto por esse espaço. É como se suas paredes guardassem nossas histórias, nossos abraços”, diz o brincante. E Rosane emenda: “Se estou triste? Oh, o contexto em que abrimos o teatro era infinitamente pior. Éramos só nós dois, novos e ingênuos. Agora, já passamos por muita coisa. Estamos no final de um ato. Independentemente do endereço, precisamos reinventar o Brincante. Muitos adoram, tiveram experiências incríveis por aqui. Mas somos desconhecidos em certos segmentos da sociedade, como o mercado imobiliário – pra eles, a gente é fundo de quintal. Aí questionam: por que incomodar a Vila? A resposta não é minha. É um questionamento para a sociedade: qual é o lugar da cultura nessa cidade? Parei por 22 anos nesse bairro porque quis ou porque o contexto era convidativo? Aí é minha vez de perguntar: construir um prédio de oito andares nessa rua é mesmo a melhor alternativa para o entorno?”

Se vão, se ficam, se voltam, ainda desconhecem o desenlace. Talvez precisem rodar, como faria Tonheta. Talvez fiquem os versos de Carrossel do Destino, na voz de Nóbrega: “Deixo os versos que escrevi, as cantigas que cantei, cinco ou seis coisas que eu sei e um milhão que eu esqueci. Deixo este mundo daqui, selva com lei de cassino; vou renascer num menino, num país além do mar… Licença, que eu vou rodar…”

 

 

Postagem – Alyne Albuquerque

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