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Após protestos, governo recria MinC
Sem pasta própria, Cultura vai permanecer em coma
DANILO SANTOS DE MIRANDA
ESPECIAL PARA A FOLHA
Parafraseando Antonio Candido no prefácio de “Raízes do Brasil”, de Sérgio Buarque de Hollanda, “a certa altura da vida, vai ficando possível dar balanço no passado sem cair em autocomplacência, pois o nosso testemunho se torna registro da experiência de muitos”. Distante da dicotomia política que está por toda parte, tenho acompanhado e refletido sobre o retrocesso que sofreria o país com a subordinação da Cultura ao Ministério da Educação.
As conquistas da Cultura em tempos recentes não podem ser dispensadas sumariamente. Houve uma organização de mecanismos que se tornaram sistêmicos para uma melhor garantia de aplicação do Fundo Nacional de Cultura, da verba gerada via Lei Rouanet; editais novos que surgiram para melhores contrapartidas e para a capilarização da cultura em todo o território nacional, entre outras medidas que induzem a uma melhor prática da produção cultural. Reforço aqui que não me expresso ingenuamente, à la Policarpo Quaresma, o patriota, de que não há espaço para muitas ações a serem empreendidas.
Sempre erigi a cultura a um ato educativo, mas tal ato se funde a um modus operandi particular, que, diverso do pedagógico necessário, a cultura comumente perpassa pelo inovador, muitas vezes pelo transgressor, pela edificação da civilidade, de uma simbologia identitária que fará com que um povo se reconheça em seus valores e também entenda o que de importante há em outros.
Há saberes e tradições de povos, independente de existir um governo bom ou ruim. A educação estabelece a hierarquia dos conhecimentos.
Num outro campo de atuação, a cultura se encerra em si mesmo, em um fim próprio para preparar o homem para seu exercício autônomo no mundo. É evidente que há uma necessidade de expressão estética que o homem carrega consigo há 30 mil anos, basta se deparar com tesouros arqueológicos, pinturas rupestres, instrumentos musicais pré-históricos ou com a dramaturgia de mais três mil anos.
Nada mais empírico que a organização da cultura. Cultura, como conceito de conjunto de tradições de uma sociedade, é talhada na ação. Ordenar essa práxis, portanto, é papel do Estado.
A cultura, para Estados fortes, subsiste como um eixo transversal estratégico que permeia todos os outros campos de atuação de uma nação: da economia às relações exteriores, do ambiental ao esportivo.
Basta creditar que a cultura nunca ficou relegada a um papel de desdém para Roma, França, Japão ou, claro, Estados Unidos. Decretar que um Ministério que não chega a ter 0,2% do orçamento da União –quando o recomendado pela Unesco é de 1%, pelo menos– estará minimizado a uma secretaria é reduzir drasticamente o papel de protagonista que o Brasil sempre almeja e, por conseguinte, subtrair do brasileiro o conhecimento de si mesmo.
O lamentável em todo esse processo consiste em principalmente perder uma forma de diálogo entre sociedade e governo, pois é óbvio que, entre Educação e Cultura, a Educação sempre será prioritária, e precisa sê-lo nesse país cada vez mais precário e que chega ao ponto, no momento, de desdenhar a cultura.
Só num país educado, a cultura poderia reivindicar a si significados, não escapar da diversidade, questionar e avançar processos de ruptura e conjuminar em si os aspectos contraditórios e apaziguadores, belos e feios, tradicionais e contemporâneos.
Além do mais, a criação do Ministério da Cultura deu lastro a secretarias dos estados e das cidades que se tornaram interlocutoras indispensáveis, que criaram políticas públicas formidáveis e que podem fazer muito mais. Às Secretarias de Cultura cabem uma vertente de dinamização urbana e de desenvolvimento que constitui em proteção social, ambiental e econômica. Manter um Ministério seria fazer o mínimo também nas escalas regionais e municipais.
O Ministério da Cultura do Brasil precisa ser o platô que reverbera valores e estabelece conexões com as mais complexas manifestações de arte e tradição do país, que contribui para que existam incontáveis modos de pensar, agir, sentir.
Lavrada em ambientes rizomáticos por sua diversidade em seu território conhecidamente amplo, a cultura brasileira se choca com mentalidades que insistem em desempoderar muitos grupos minoritários que se escoram nela para continuarem suas causas humanitárias e justas –os indígenas, a periferia, a miríade de manifestações de negros, a cultura “queer” e muitos outros.
Sem pasta própria, a Cultura continuará subsidiária, mais que nunca, adormecida, em coma, sem que os gestores futuros saibam que ela é um direito humano tal qual o é o direito à liberdade.
É possível que em nenhum outro Ministério exista uma relação tão direta e intensa com a criação e a paixão. Essa pasta suscita amiúde sentimentos paradoxais oscilantes entre afeto imediato ou descrença, otimismo ou pessimismo, entusiasmo ou vergonha. Sem identificação coletiva com as demais manifestações artísticas, não existe possibilidade de criar condições para que haja fomento, educação, desenvolvimento, imaginação e consumo. Cercear o ser humano desse reconhecimento de si mesmo é violar sua cidadania.
Dedicar-se à arte, à história e às tradições significa pleitear uma coesão social cada vez mais sólida que é possível e se consagraria por um estímulo verdadeiro ao Ministério da Cultura, que desejo profundamente que não se acabe.
Nenhum governo prescinde de gestão. Eu aposto no exercício diário de um gestor que acredita na versatilidade das esferas pública e privada, que dialoga com artistas, intelectuais, acadêmicos, agentes culturais a fim de agregar o povo e sua cultura. É também papel de Estado aproximar saberes multilaterais para difundir as inúmeras maneiras de interpretar um país em um tempo –ou vários países em vários tempos.
DANILO SANTOS DE MIRANDA é sociólogo e diretor do Sesc São Paulo